segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Incômodo Secular

[Foto: Bernardo Castanho]
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INCÔMODO SECULAR
(Ju Rigoni)
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I
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Estranha genealogia,
sem frutos de amores proibidos.
de escolha pré-concebida,
pré-acertada entre os pais...
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Do rito sabem as mães
que viveram o mesmo drama
e, obstinadas,
empunham contra o rebento
a lâmina afiada,
de fio contaminado
pela palavra sagrada.
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Requinte de crueldade
que expõe ao risco
meninas em tenra idade.
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Nascem para a dor de morrer,
todos os dias,
da dor de todas as dores, -
de falta de amor.
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Elas não têm clitóris,
não conhecem o lugar
onde mente e corpo
encontram-se no prazer.
Não conjugam o verbo ser...
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Só sabem da alegria do "cego",
que potencializa os demais sentidos.
O ego é luz apagada.
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A arma é poderosa, -
nenhum homem pode com ela, -
por isso é melhor extirpar!...
Eles têm muito.
Eles têm tudo.
Mas...
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II
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Poderoso clitóris
que ganha o mundo.
Admirado por homens
e mulheres,
cada dia mais empinado,
mais arrogante,
mais instigante,
mais sabido,
sugado, chupado
e querido,
mais amado que o falo,
é o que dizem...
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Metam-se com a vagina,
ou, se preferirem, com o ânus,
que do contato com o clitóris
ninguém entra ou sai impune.
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Del.icio.usTechnoratiDiggSimpy

7 comentários:

  1. Ju, belíssimo poema. Já li a respeito desta mutilação "do prazer". É uma cultura muito diferente da nossa, e diga-se de passagem: graças a Deus! "Do rito sabem as mães que viveram o mesmo drama e, obstinadas, empunham contra o rebento a lâmina afiada,
    de fio contaminado pela palavra sagrada." Para elas é comum, o anormal é ter clitóris, tudo em nome da "palavra sagrada". Triste fim de quem tem seu prazer mutilado, sem escolha. E para uma crença/costume ter optado por decepá-lo das suas mulheres é porque o clitóris realmente incomoda, é poderoso!
    Beijos.

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  2. Poema maravilhoso, ainda mais se considerado seu sentido metafórico: o clitóris proibido também nas sociedades ocidentais (ditas livres); amputado das conversas e dos contextos, como se não existisse; na tentativa de controlar e ‘podar’ a sexualidade, a liberdade e a felicidade feminina, apenas ignorando ideologicamente a parte do corpo mais diretamente relacionada ao seu prazer; justamente aquela que, como disse nossa poetisa, após o contato ‘ninguém entra ou sai impune’. Quantas mulheres, ainda hoje, tendo nascido em países ‘civilizados’ e ‘modernos’, sem que lhes falte pedaços do corpo, não vivem completamente isentas de prazer, como se não tivessem clitóris, tais aquelas infelizes da África e do Oriente?

    Ju,... poema bom tem disso: a gente ‘viaja’ na análise.

    Grande abraço, Poetisa!
    .

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  3. Venho acompanhando esse blog desde seu nascimento. Embora não tenha comentado antes, estou sempre lendo tudo. A cada poeta que surge é uma surpresa, um estilo, uma visão, um encantamento. No entanto, esse poema da Ju mexeu especialmente comigo, pois, excetuando-se os raros textos científicos sobre esse tema, não tenho visto qualquer tipo de solidariedade para com essas mulheres. Ju, além de lindo, seu poema tem grande importância social, pela ousadia de abordar aquilo que mesmo os que se dizem mais modernos e libertários pouco ou nada falam a respeito.

    André: sobre seu comentário, que é, sem dúvida, muito interessante, tenho a dizer apenas que, a meu ver, a Ju está se referindo mesmo à amputação real. Não como metáfora sobre o controle da mulher nas sociedades livres. Mas como crueldade, tortura física a ser denunciada pela arte. Essa visão ideológica da qual você fala existe sim. Sem dúvida. Mas essa, por ser algo externo ao corpo, as mulheres até podem superar mais facilmente.

    Ufa. Falei demais.

    Por fim, deixo um monte de beijo a todos esses poetas maravilhosos daqui.

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  4. Querida, você é mesmo surpreendente: seja qual for o tema, sempre nos dá a oportunidade de maior reflexão. Eu já li sobre essa pratica absurda. É revoltante! Parabéns, Ju. Seu poema é maravilhoso!
    Foi fundo, definiu muito bem essa crueldade sem tamanho, abordando as diversas conseqüências que ela acarreta. Escreva, Poetisa. Escreva muito, pois, além de prazeroso, ler um texto seu é sempre algo enriquecedor.

    Beijinhos de Alma.:)
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  5. Nada a declarar, apenas a lamentar que em pleno terceiro milênio práticas como essa barbárie continue acontecendo impune.E tudo em nome da palavra sagrada. Os comentáros de todos aqui expostos já dizem o suficiente. Lavro apenas o meu olhar de indignação.

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  6. Sobre esse incômodo secular, acredito importante colocar que as mães menos esclarecidas utilizam qualquer objeto cortante, podendo ele estar ou não sujo e/ou cego. Mas sempre contaminado por uma equivocada, machista (um modo de garantir fidelidade ao homem) e, portanto, conveniente
    interpretação.

    Devo lembrar também, embora eu não possa afirmar com certeza, fala-se em mais de CEM MILHÕES de mulheres com clitóris extirpados e/ou vaginas costuradas. É impossível saber quantas meninas morrem durante ou depois da extirpação, por conta de processos infecciosos. E, infelizmente, esta não é a única violência a que estão submetidas numa sociedade onde a mulher é menos que nada... É mesmo estarrecedor. E acontece logo ali... Sob um véu, que apesar de transparente, o mundo insiste em não ver... Por interesses econômicos, por medo, ou ainda, por acreditarem-nas confortáveis em sua cultura fundamentada em crenças religiosas.

    Sabe-se que, hoje, já existem homens que, ao tratar casamento, exigem da família da noiva que suas mulheres sejam "inteiras". Mas isto ainda é raro, e ocorre mais frequentemente entre famílias abastadas.

    Sabe-se também que a maioria sofre de uma solidão avassaladora. Não têm nem mesmo com quem reclamar... Ainda que seus maridos tenham várias esposas, lamentar-se com uma delas pode piorar a sua condição no ambiente doméstico, porque reclamações acabam tornando-se moedas de troca muito bem usadas pela "amiga" que emprestou-lhe ombros e ouvidos, e que vive situação idêntica à dela.

    Agradeço os comentários. Bjs e inté!

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  7. De bom grado incluirei os seus versos na blogagem. Para isso, peço que me envie um email para phoenixadaeternum@gmail.com

    Fico à espera!

    :)

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